Material didático

 

O liberalismo, o neoliberalismo econômico e a Constituição Federal

 

Henrique Chagas*

 

Embora vivamos sob a égide de uma Constituição que visa o bem estar social, com todos os seus valores e princípios, claramente se observa que, contrariando sua própria finalidade de fomento e desenvolvimento das atividades econômicas, a maioria das empresas, especialmente as instituições financeiras, atua como se estivesse sob a égide de um Estado Liberal, onde, efetivamente, o Estado não interfere na relação entre os particulares.

Tal dissonância decorre em razão da força e preponderância demonstrada por parte das grandes empresas e a fraqueza da outra parte, seus clientes e consumidores. A par desse paradoxo decorrente da figura do Estado ideal pretendido pelo legislador constituinte de 1988 e o de fato, surgido a partir da prática de uma política de consenso estabelecida pelas forças hegemônicas do neoliberalismo (Partido da Frente Liberal e grupos econômicos detentores do poderio financeiro), temos que a nossa sociedade é de consumo onde todo o sistema econômico-social é direcionado e baseado na aquisição e consumo de bens e serviços.

A propósito, o Artigo 170 da Constituição Federal, por exemplo, estabelece que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano, e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais: VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte."

Seu parágrafo único acentua a importância da liberdade de iniciativa, estabelecendo que é "assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei".

Vê-se, pois, que, embora os dispositivos constitucionais vigentes entre nós ressaltem, a priori, um liberalismo formal, na prática o que se vê são os postulados do neoliberalismo, que pressupõe, por certo, necessários controles até para que sejam evitados abusos de toda ordem, inclusive para as empresas, concorrentes entre si.

O liberalismo econômico nasceu com a decadência do regime econômico mercantilista e o surgimento da "burguesia". Seus postulados principais são a livre iniciativa e a livre concorrência, em princípio sem qualquer interferência do Estado ( "laissez-faire, laissez-passer, laisser-vivre").

Em meados do século XVIII, a famosa expressão laissez-faire, laissez-passer foi utilizada pela primeira vez por Vincent de Gournay, membro da escola fisiocrata. Contra o sistema mercantilista do seu tempo, os fisiocratas propugnavam um sistema de economia livre, menos protecionista e intervencionista, mais natural e espontâneo. A expressão laissez-faire significava eliminar o intervencionismo, deixando que cada indivíduo produzisse e fizesse o que lhe parecia melhor, enquanto laissez-passer consistia em romper as barreiras alfandegárias, para estimular o comércio e a circulação de riquezas.

Não obstante, Adam Smith (1723-1799) é sem dúvida alguma o patriarca da economia moderna. Sua obra clássica "Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações" (1776) ofereceu uma estrutura doutrinal ao capitalismo. Segundo este grande teórico, a economia livre é, por um lado, uma norma política que exige a eliminação de todas as restrições, exceto os impostos que devem ser pagos por justiça e, por outro lado, é também um axioma teórico segundo o qual a economia livre não produz nenhum caos, mas, pelo contrário, uma estrutura sólida. Segundo Adam Smith, no seu mais famoso livro: "Riqueza das Nações", "todo homem, contanto que não viole as leis da justiça, deve ter plena liberdade para buscar seu próprio lucro como lhe agrade, dirigindo sua atividade e investindo seus capitais em concorrência com qualquer outro indivíduo ou categoria social". Em sua opinião, a iniciativa particular, a liberdade de contratar trabalhadores, a propriedade privada dos meios de produção, e o interesse pelo lucro máximo, são elementos fundamentais das organizações produtivas.

Deixando que cada indivíduo procure livremente seus interesses particulares, promove-se freqüentemente, de modo mais efetivo, os interesses de toda a sociedade. Isto não acontece tão bem, quando a sociedade procura agir diretamente, pois por detrás de uma aparência nebulosa, está a "mão invisível" de uma ordem inteligível.

Temos aqui um texto clássico de Adam Smith que merece ser citado, também de sua mais famosa obra - "Riqueza das Nações": "Quando um indivíduo dirige a atividade econômica de tal forma que o seu produto representa o maior valor possível, ele pensa apenas em seu lucro pessoal, mas neste caso como em muitos outros, é conduzido por uma mão invisível a atingir um objetivo que não fazia parte de suas intenções. O fato desse objetivo não fazer parte de seus propósitos não constitui necessariamente uma coisa má para a sociedade. Buscando seus próprios interesses, o indivíduo promove freqüentemente os interesses da sociedade de modo mais efetivo do que quando procura promovê-lo diretamente. Se alguém diz que faz comércio para o bem comum, nunca faz muito bem."

As inúmeras críticas ao liberalismo econômico , o crescimento da corrente socialista e a evolução interna do capitalismo, após diversas crises - particularmente a crise devastadora dos anos trinta -, levaram em grande escala ao enfraquecimento e divisão das escolas liberais. Thomas Hobbes, no seu Levithan, numa crítica ao liberalismo, afirmou que "a liberdade econômica é bem pouco democrática: o liberalismo econômico é a doutrina dos fortes e dos poderosos, é darwinista e aristocrática.... é individualista, mas não é igualitária. Crê na virtude da liberdade, mas a liberdade não possui em si mesma sua razão de ser." Muitos consideravam o trágico desmoronamento econômico da Grande Depressão como uma prova clara do defeito intrínseco da economia de mercado, e sua recuperação posterior como conseqüência da adequada intervenção do Estado.

O êxito da doutrina keynesiana contribuiu para o fortalecimento do papel do Estado na vida econômica. Keynes estabeleceu, com efeito, a existência de duas classes de ciência econômica: a tradição ortodoxa ou clássica que se aplica ao "caso especial" duma economia de pleno emprego; e outro sistema muito diferente que se aplica quando não existe esse pleno emprego de recursos humanos e materiais. Nesse último caso, o Estado tem um papel importante para racionalizar a vida econômica e para evitar as desigualdades típicas do mercado.

Nesse contexto nasceu o "neoliberalismo" que, conservando o termo, muda significativamente de enfoque. No plano econômico, considera-se que a livre competição é uma ótima solução, melhor ou mais eficiente, mas não leva automaticamente a uma ordem natural. Compete ao Estado, sob esse ponto de vista, a instauração de uma ordem legal que garanta o exercício da iniciativa individual na linha da livre concorrência.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o modelo do "Estado do Bem Estar Social" foi a lei do momento em muitos países europeus. Por outro lado, o aparente êxito da planificação na União Soviética teve grande influência sobre a política de desenvolvimento nos países subdesenvolvidos durante os anos 50, porque ainda não se conhecia seu enorme custo humano.

Houve como conseqüência um fortalecimento do Estado, que transformou-se em "agente político e econômico" de primeira ordem, assumindo um "papel diretor" na planificação da economia, a fim de regular os mercados, neutralizar as distorções e corrigir a má distribuição. O controle estatal sobre os mercados, a política de preços, a política social mediante redistribuirão de rendas, os programas habitacionais, o seguro social etc. foram introduzidos em muitos países.

Contudo, desde fins dos anos 70 foi sendo divulgada, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, uma corrente ambígua, heterogênea e profundamente ideologizada chamada hoje comumente "neoliberalismo". Seus mentores são essencialmente Milton Friedman e Friedrich von Hayek, ambos vinculados à chamada "Escola de Chicago". Esse termo "neoliberalismo" que diariamente aparece nos jornais e revistas, tem, pelo menos na América Latina, um sentido bastante pejorativo: é sinônimo e um programa econômico insensível, de capitalismo selvagem. Por isso, não é de se estranhar que muitos presidentes latino-americanos que aplicaram o programa neoliberal com fervor quase religioso, tenham vergonha de qualificar-se como neoliberais.

Devido ao desmoronamento do "socialismo real" - que determinou o fim do sistema econômico centralmente planificado, e o impulso que lhe deram os governos de Margaret Thatcher, Ronald Reagan e os organismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial - a maré neoliberal expandiu-se e ainda se expande como uma mancha de óleo pelo mundo todo, servindo de modelo a quase todos os governos.

Trata-se de um conjunto de medidas econômicas aplicadas durante as últimas décadas, que caracterizam-se pelo ajuste estrutural, participação mínima do Estado, abertura do mercado mundial, privatização, fomento à competitividade. Mas neoliberalismo não é apenas um projeto econômico. Suas propostas vão além e procuram abarcar as grandes dimensões sócio-políticas de nossa época. Pretende também ser um sistema ético-cultural, que incuba múltiplos desafios e problemas para a convivência social, tendo como conceitos chaves: a liberdade, a democracia e a igualdade.

Ainda que o neoliberalismo continue sendo o preceito da moda, já se manifestam alguns sinais de seu esgotamento. A votação democrática em favor dos partidos socialistas ou ex-comunistas na Polônia, Eslováquia, Ucrânia, Bulgária e Hungria tem muito a ver com o fracasso das receitas neoliberais, aplicadas em todos esses países. Mesmo na Inglaterra, depois de quinze anos de hegemonia absoluta da tendência thatcheriana, o Partido Conservador perdeu a metade de sua bancada nas eleições para o Parlamento Europeu.

Cada vez mais tornam-se conhecidos os excessos do neoliberalismo, e se percebe a necessidade de uma combinação entre ação pública e ação privada em qualquer processo de desenvolvimento. Precisamos, sem dúvida, de um mercado livre que funcione cada dia melhor para acelerar o crescimento econômico e favorecer a toda a população, mas se faz necessário também um Estado mais moderno, eficiente, dinâmico e melhor informado, que saiba transferir para a sociedade civil maiores responsabilidades na gestão produtiva. Que saiba também exercer sua função de controle para garantir a estabilidade a longo prazo na política de desenvolvimento, e para corrigir as imperfeições do mercado.

Todavia, na concepção do Estado do Bem Estar Social, ideologicamente estabelecido na Constituição Federal de 1988, não se inviabiliza ou afasta o lucro mas procura-se dar-lhe outra forma ou seja, o lucro acompanhado do atendimento social com a partilha do seu próprio produto – é a chamada função social do lucro.

Nesse passo demonstrada está a necessidade do exercício do capitalismo regrado, sem exageros ou maiores abusos, respeitando-se o direito de todas as partes visando alcançar um equilíbrio nas relações e a suportabilidade das próprias obrigações. É, na prática, a concepção neoliberal de Estado.

Podemos concluir que: a) o neoliberalismo pressupõe, em princípio, a ampla liberdade de iniciativa e o exercício de atividade ou profissão; b) referida liberdade, porém, não pode comprometer a justiça social, um dos pressupostos do próprio bem comum do Estado; c) dessa forma, impõem-se-lhe limites, como a regulação do mercado, quer através do exercício da própria atividade econômica pelo Estado, ou então pela permissão ou concessão de atividades reputadas essenciais, e, por fim, pela repressão dos desvios ou abusos verificados.

O neoliberalismo brasileiro encontra-se contemplado na Constituição Federal, como vimos, apesar dos fundamentos do Estado serem de outra concepção - do Bem Estar Social (artigos 1o , 3o e 5o da Constituição Federal), onde é garantida a ampla liberdade de iniciativa econômica, desde que respeitados os princípios elencados no artigo 170 da Constituição Federal de 1988. Mas é verdade, também, que em seu artigo 173, a Carta Constitucional estabelece limites, tanto no que diz respeito à ampla liberdade, impondo-lhe controles, como no caso da participação do Estado no domínio econômico.

Disso decorre, por conseguinte, que: a) em princípio, a iniciativa econômica é conferida aos particulares, e ao Estado apenas por exceção, e é a viga mestra do chamado liberalismo econômico; b) o Estado pode intervir no domínio econômico para reprimir abusos do poder econômico, que visem à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros; c) prevê ainda o artigo 173 a punição dos responsáveis pela prática de atos atentatórios à ordem econômica, financeira e à economia popular; e d) o artigo 174, por sua vez, prevê que ao Estado incumbe regular, como agente normativo, a atividade econômica.

Realmente é preciso que o Estado utilize do seu poder para evitar e reprimir os desvios e abusos verificados no livre exercício da iniciativa econômica. As crises ocorridas, atualmente, na construtora Encol e na Golden Cross trazem duas lições que não podem ser ignoradas. Primeira: toda empresa que atua junto ao grande público deve ser considerada como "empresa pública". Como tal, tem de ser obrigada a publicar balanços confiáveis e a prestar contas de seus atos da mesma forma que as empresas de capital aberto. Segunda: é obrigação do Estado fiscalizar toda atividade que envolva poupança pública. Não adianta as autoridades alegarem que esses problemas pertencem ao mercado. Quando envolvem poupança de milhares de pessoas, passam a ser problemas públicos, a exigir regulação por parte do Estado.

Para que não se confirme o caráter pejorativo que se tem dado ao neoliberalismo brasileiro (uma forma ideologizada do capitalismo selvagem), a melhor resposta que se poderia dar à crise da ENCOL – além de encontrar saídas para os adquirentes do imóveis – seria a Comissão de Valores Mobiliários - CVM acelerar sua proposta de toda grande empresa ser obrigada a publicar balanços, independentemente da natureza do seu capital. E o Banco Central passar a entender como ativo financeiro toda a captação de poupança – mesmo aquelas que vendam chifres em cabeça de cavalo.

Dentro deste contexto, onde princípios neoliberais encontram-se contemplados neste novo modelo de Estado estabelecido pelo legislador constituinte de 1988, faz-se necessário que o Estado busque regular as relações econômicas, especialmente aquelas relacionadas ao crédito e apresente mecanismos eficientes para que os princípios constitucionais do Bem Estar Social não fiquem sufocados pelo neoliberalismo (no sentido pejorativo que se tem dado ao termo), face ao seu poderio econômico.

 

Henrique Chagas: advogado em Presidente Prudente/SP

e-mail: chagas@prudenet.com.br